Van Gogh (1853-1890) e Paul Gauguin (1848-1903) odiavam o mundo artístico dos grandes boulevards parisienses. Não gostavam de seus críticos, das vaidades e da maledicência dos marchands. Os pintores queriam ir para um lugar onde pudessem viver em harmonioso companheirismo, dividindo despesas e ganhos. Em 1888, Van Gogh sonhava em transformar sua Casa Amarela, no sul da França, em uma colônia de artistas. Gauguin comprou a ideia e se mudou para a casa do amigo. O sonho durou pouco. Os dois pintaram juntos durante algumas semanas, até que a relação se deteriorasse e Van Gogh – que foi sustentado financeira e emocionalmente pelo irmão, Théo, durante toda a vida – chegasse ao extremo de decepar a própria orelha. Os dois não contavam com as dificuldades financeiras e os problemas de convivência, constantemente presentes entre os gênios. Desde sempre, os mestres da arte tiveram dificuldade para harmonizar sua genialidade com a “trivialidade” dos recursos financeiros.
Aliás, não é de hoje que a vida cotidiana tem atropelado a arte. Desde a Roma Imperial, pintores, escritores e músicos têm buscado no mecenato – termo que denomina o sustento de artistas por um patrono – uma forma de conciliar a produção artística às necessidades práticas da existência. O filósofo e linguista Tzvetan Todorov, autor de A beleza salvará o mundo(2011), explica que a vida de todo artista é uma mistura entre a necessidade de sobreviver e a urgência imperiosa da elevação. “Tal é o preço da criação”, reflete ele. O autor conta que, quando jovem, o escritor Rainer Maria Rilke (1875-1926), em uma visita ao já célebre escultor Auguste Rodin (1840-1917), não se contentou em interrogá-lo sobre suas obras. Ele queria saber qual é a melhor maneira para se viver bem. Ao que o escultor respondeu: é preciso sempre trabalhar. “Ao privilegiar assim o trabalho de criação, o artista negligencia forçosamente outras facetas da sua existência: sua vida material, sua relação com os outros humanos. Foi essa a escolha que Rodin quis fazer. Para ele, por exemplo, é simplesmente uma concepção de arte, mas um modo de vida que ele decide adotar”, revela.
O poeta Charles Baudelaire (1821-1867) era outro defensor de que o artista não devia preocupar-se com o “mundo real”. “Ainda mais porque o real só se revela através do verniz das aparências”, explica o crítico Jean-Baptiste Baronian, na biografia Baudelaire (2010). Como Van Gogh e outros artistas, Baudelaire teve na família – em particular, na mãe – o seu mecenato. Ainda assim, e apesar disso, passou boa parte da vida em constantes dificuldades de sustento.
ADOTE UM ARTISTA
Há três anos, quando a cantora Lulina se defrontou com as mesmas dificuldades de produzir arte sem ter estabilidade financeira, surgiu a ideia de investir em um modelo de financimanto musical colaborativo. No mês passado, o plano saiu do papel com o formato do crowdfunding (modelo pelo qual indivíduos comuns ou empresas financiam projetos através de doações coletivas). No Minimecenas, a soma de pequenas doações dos fãs permite que os artistas continuem produzindo, e em troca, os “investidores-fãs” ganham privilégios oferecidos por quem está sendo financiado. Trata-se de uma visão digital do mesmo mecenato da época do Renascimento, voltado a incentivar o mundo das artes por meio do mundo do dinheiro. Poderosos intelectuais, comerciantes e políticos beneficiavam os artistas mediante doações, e em geral o faziam por amar sua obra.
O site oferece estrutura para que os artistas se mobilizem com os seus próprios fãs e possíveis marcas patrocinadoras, independentemente do resto do mercado. “É voltado principalmente para produções independentes. Se dará certo, não sabemos. Mas, se funcionar para um único artista, já valeu a pena ter criado o projeto. O Minimecenas não pretende provocar uma revolução. Só queremos viabilizar a produção de projetos e artistas que não têm espaço na mídia tradicional”, explica. Os fãs e as empresas podem contribuir com valores que vão de R$ 5 a R$ 500,00 – por um período de 12 meses, via pagamento digital.
No site, entre os artistas da nova geração, estão Dudu Tsuda, Fabio Trummer, Kiko Dinucci, Bárbara Eugênia, Pélico e Bluebell – além do fotógrafo Tuca Vieira e do escritor Alexandre Soares Silva (A coisa não-deus, esgotado, e Morte e vida celestina). Um nome que ganha destaque é o do ex-mutante Arnaldo Baptista. Para Lulina, este é o momento de discutir novas alternativas de remuneração artística, uma vez que a internet oferece alcance e liberdade para organizar pequenos e eficientes grupos através de plataformas baseadas no mecenato (ou talvez devêssemos chamar de “fãcenato”). “A diferença é que ele amplia a participação para pessoas que gostam e se envolvem com produção artística, mas que não são tão endinheiradas quanto os antigos mecenas”, diz.
Assim como os fãs, que escolhem o quanto vão investir, são também os artistas que determinam os privilégios oferecidos aos seus patrocinadores. Vale desde a participação na criação da obra até a visita à própria casa. No Minimecenas, por exemplo, o fotógrafo Tuca Vieira promete imagens em alta resolução para download. O compositor Arnaldo Baptista se compromete a sortear todos os meses um de seus desenhos entre os que contribuírem para a continuidade de sua arte. Exclusividade também é a promessa da cantora Bárbara Eugênia. “Prometo fazer um bate-papo mensal online e mostrar com exclusividade as músicas novas!”.
A cantora e compositora paulista Bluebell aposta na interatividade. “Prometo fazer pocket shows online mensalmente, com exclusividade”, garante. O sound designer e artista multimídia Tutu Tsuda garante aos minimecenas uma peça experimental, em alta resolução, por mês. Mas, não para por aí. Dependendo da generosidade de seu apoiador, o privilégio vai de crônicas todos os meses, CD com arte artesanal contendo 12 faixas ao longo de um ano de mecenato, disco em vinil em edição limitada, à pocket show na casa do apoiador. Em caso de livros também, o autor pode, por exemplo, publicar o nome dos doadores na edição, fornecer uma quantidade de exemplares (ou acessos no caso de eBook), ou disponibilizar um exemplar em primeira mão antes do lançamento etc.
No crowdfunding (do inglês crowd: multidão, e funding: financiamento) quem busca investimento para alguma iniciativa publica o projeto em um site, estabelecendo quanto quer arrecadar. O site escolhido fica com uma fatia do capital amealhado, geralmente 5%. E, caso não se atinja a meta de arrecadação em determinado tempo, o dinheiro dos que apostaram é devolvido.
O modelo avançou depois da crise global de 2008, quando muitos fundos de capital de risco quebraram, aparecendo como opção o investimento coletivo do crowdfunding. Muitos blogs de autores começaram a testar as possibilidades de ver seus títulos publicados através deste esquema. Alguns tiveram boa receptividade e o passo seguinte foi o aparecimento dos “sites-plataforma-crowdfunding”, que funcionam como brokers entre os autores e doadores.
A essência de empreender um processo artístico criativo, sendo ele inovador ou não, está em estabelecer a máxima confiança de terceiros (potenciais financiadores) nas premissas do projeto (metas, resultados esperados,payback, alcance etc). Essa, aliás, sempre foi uma das linhas mestras do capitalismo. Quanto mais confiança se tem nos resultados a serem alcançados, maior é a possibilidade de garantir investidores prontos a caminhar juntos no projeto. A tecnologia veio para pavimentar essa estrada e facilitar a interlocução entre empreendedores e financiadores.
O Kiva.org foi a primeira plataforma do mundo a promover o microcrédito pessoa-para-pessoa (P2P), que utiliza a web para ligar pequenas empresas do terceiro mundo a investidores filantrópicos do primeiro. O site utiliza a conectividade para aproximar os mais necessitados daqueles que têm melhor condição financeira e desejam ajudar em ações humanitárias, sociais e filantrópicas.
Outro exemplo é o 33needs – plataforma que permite aos interessados em projetos sociais investir e obter ganhos financeiros. O portal é voltado a organizações sociais focadas em projetos ligados a sustentabilidade, educação, comunidade e saúde.
PLATAFORMAS CULTURAIS
O site norte-americano Kickstarter, lançado em 2009, é o pioneiro e continua sendo uma referência mundial em crowdfunding. A plataforma já atraiu mais de US$ 35 milhões, aplicados por 400 mil pessoas em 14 mil projetos (filmes independentes, gravações caseiras, livros, exposições etc). Alguns chegaram a captar mais de US$ 100 mil. Ele já promoveu o filme Blue like Jazz, o documentário The Pirate Bay – Away From Keyboard, de Simon Klose, e a rede social Diaspora. Um dos exemplos mais conhecidos do Kickstarter é o do designer Scott Wilson, ex-diretor de criação da Nike. Ele pediu pelo Kickstarter US$ 15 mil para fabricar um incrementado relógio de pulso e acabou recebendo quase US$ 942 mil de mais de 13 mil internautas.
Outra plataforma de sucesso voltada ao financiamento de projetos culturais (em geral produções musicais, cinematográficas e literárias) é o FansNextdoor. Tendo como público-alvo uma massa fiel de admiradores, o site funciona através do sistema de pagamento PayPal, e, da mesma forma, se a meta do projeto não for cumprida, os fundos são devolvidos e quem investiu não fica no prejuízo.
Já o IndieGoGo é aberto a qualquer boa ideia (artística ou não), oferecendo as ferramentas para construir uma campanha e arrecadar fundos para projetos que incluem jogos, cinema, design, educação, móveis e tecnologia. A plataforma está integrada com Facebook, Twitter e outras redes sociais. Essa é uma característica cada vez mais frequente do mecenato digital: o convite para apoiar o projeto ou a proposta do autor corre rapidamente pelas redes, fomentando a participação. Se rodar durante algum tempo sem repercussão... mau sinal.
Em literatura, uma das plataformas internacionais que têm avançado é a Unbound. Fundada pelos escritores Dan Kieran e Justin Pollard, apresenta como foco um mix decrowdfunding e processo editorial (funciona tanto como plataforma de financiamento quanto como editora, cumprindo a cadeia de funções de uma edição). Autores interessados em publicar divulgam seus trabalhos no site. Se os leitores “comprarem” a ideia, o livro avança. A plataforma disponibiliza diferentes modelos de apoio à produção editorial, cuja coleta de “assinaturas” (investidores) varia de 10 a 250 libras. Os assinantes têm seus nomes publicados no final do livro e participação nos lucros caso a obra seja publicada.
Em setembro, ocorreu em Londres o evento Unbound Live em que os interessados puderam investir na publicação de e-Books. Trata-se de uma seleção de obras de autores em busca de pessoas que queiram financiar seus romances. Um dos idealizadores do evento foi John Mitchinson, diretor de uma famosa rede de livrarias e de um programa na BBC. Outro promotor do evento foi a agência Live Art Development, que também possui uma plataforma de crowdfunding especializada na promoção de projetos artísticos. A vertente literária no Reino Unido é uma das mais atrativas para o mercado de “mecenato coletivo”.
No Brasil, apesar de o formato desse tipo de financiamento ainda ser embrionário, estima-se que quase 70% do total investido nos portais de crowdfunding são direcionados à área cultural. Um dos projetos mais antigos é o Incentivador. Lançado em 2009 e aberto a quase todas as categorias artísticas, foi selecionado pelo programa Prime da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) no mesmo ano, com um prêmio de apoio à inovação.
O Catarse, que estreou no início de 2011, também se propõe a financiar projetos criativos com participações de R$ 10 a R$ 10 mil. O objetivo é abrir até 600 iniciativas para captação de recursos em 2011. Áreas como arte, música, design e produtos inovadores têm prioridade. Um dos empreendimentos promovidos pela plataforma foi o financiamento coletivo da loja virtual Rabiscaria, que congrega designers e ilustradores para criar soluções personalizadas (utilidades domésticas, louças, peças de vestuário etc.). Até o início de março, o projeto já havia arrecadado 103% do valor necessário.
Na área de audiovisual, a MediaFundMarket é uma das apostas. Lançada em agosto pela Inffinito (produtora que organiza dez festivais de filmes nacionais), a plataforma é direcionada a investimentos coletivos em microfilmes, videoclipes, conteúdo de TV, curtas, médias e longas-metragens, mostras de filmes etc. A estimativa é que até março de 2012 haja 30 projetos inscritos para financiamento e dez já financiados. Em dois anos, a projeção é de 200 projetos com financiamento de pelo menos 50% deles.
O PODER DOS FÃS
Apesar de embrionário e ainda sem legislação específica, o modelo pioneiro one-to-one promete ir em frente. Com o avanço de uma sociedade individualista, vertical e extremamente liberal (“eu ponho meu dinheiro onde quiser e ninguém tem nada a ver com isso”), é difícil imaginar que o formato não se expanda rapidamente. Basta lembrar, em um passado não muito distante, do e-commerce, que surgiu cheio de suspeitas e falta de regulação e depois deslanchou.
Atualmente, um dos exemplos mais bem-sucedidos de crowdfunding no Brasil é o site Queremos que sozinho arrecadou mais de R$ 400 mil para a realização de shows internacionais no país. De acordo com os idealizadores, o projeto surgiu uma vez que os eventos internacionais vinham ao Brasil, mas não chegavam ao Rio de Janeiro por falta de público. Cansados de esperar e certos de que há, sim, público interessado na cidade, eles resolveram fazer algo além de reclamar. O show da vez é o da banda The Kills. Para confirmar a apresentação do dia 28 de outubro, no carioca Circo Voador, será necessário arrecadar R$ 76 mil para cobrir os custos da apresentação. A mobilização é feita pelas redes sociais e o sitefunciona tanto como ferramenta de financiamento como de divulgação.
Uma vez atingido o valor necessário para produção do evento, garantindo assim a sua realização, os ingressos são restituídos com a arrecadação da bilheteria. Todos os que compraram o ingresso-reembolsável têm direito a um reembolso proporcional à venda dos convites regulares, podendo ir de zero até o valor integral. Nos casos dos shows de Miike Snow, Belle & Sebatian, Mayer Hawthorne, Two Door Cinema Club, Vampire Weekend e LCD Soundsystem, aqueles que apoiaram financeiramente assistiram ao show de graça.
Para a cantora Lulina, do Minimecenas, é cada vez maior o público que busca qualidade e originalidade na música, nas artes plásticas, na literatura. “Com o avanço da internet, novos talentos são descobertos e valorizados em todo o mundo o tempo todo. Cada vez mais, quem descobre e escolhe os artistas que serão destaque é o próprio público. É só observar o espaço que artistas independentes, principalmente na música, ganharam no mercado, muitos usando apenas a internet como ferramenta de divulgação. Talvez muitos não serão receptivos a essa iniciativa. Primeiro, por não estarem tão envolvidos com as dificuldades de produzir arte no Brasil. Segundo, por nem todo artista ou fã querer
admitir que essas dificuldades existem.” ©
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ORIGENS DO MECENATO E DO MERCADO DA ARTE
O termo mecenato foi atribuído em alusão ao romano Caio Mecenas (68 a.C – 8 a.C), conselheiro do imperador Otávio Augusto (herdeiro adotivo de Júlio César), que protegeu e sustentou um círculo de intelectuais e poetas, incluindo Horácio e Virgilio, e transformou-se em modelo para vários governos.
A prática se popularizou no período Renascentista, que vivenciava um momento de pujança econômica com o surgimento da burguesia. Michelangelo, Rafael, Caravaggio, Bernini, Rembrandt, entre outros artistas, beneficiaram-se do sistema de mecenato. Nesse período, a arte visual era utilizada para o ensino dos fiéis – que eram, em grande parcela, analfabetos. Por outro lado, a burguesia – como grupo menos tradicional – buscou a promoção social através da arte e forneceu apoio financeiro aos artistas e pensadores. Entre os mecenas estavam papas, bispos, políticos e colecionadores de arte.
De acordo com o crítico Simon Schama, autor de O poder da arte (2010), uma das questões mais importantes abordadas pelo Concílio de Trento, em sua parte final em 1561-1563, foi o papel da pintura sacra como inspiração para os fiéis adorarem, venerarem e obedecerem. “Instintiva e intelectualmente, os padres da igreja sabiam que, como a vasta maioria dos europeus era analfabeta, as imagens constituíam a maneira mais poderosa de instruir as massas e preservar sua lealdade”.
Ao banir as imagens das igrejas por julgar que infringiam o segundo mandamento, a Reforma protestante operara uma revolução no mundo das artes. O tradicional patrocínio dos príncipes e nobres cedia lugar ao primeiro mercado de arte popular. E foi Rembrandt que aproveitou o bom momento, apresentando-se na história como um empresário e investidor, além de pintor.
De acordo com a historiadora Svetlana Alpers, autora de O projeto de Rembrandt – o ateliê e o mercado (2010), o pintor construiu a si mesmo como uma marca distinta, capaz de ser negociada como mercadoria. “Na condição de mestre do seu ateliê, afirmou sua liberdade individual e soube livrar-se da dependência de mecenas e patrocinadores. Rembrandt não foi apenas um homem de ateliê, também foi um homem de mercado. O valor é uma construção social ou humana produzida num sistema de relações ativado pelos desejos humanos”, disse.
A noção de valor na arte – seja atribuída pelos mecenas seja pelo mercado – tem uma longa e complexa história. Mas, para isso, basta lembrar de uma frase do pintor italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680): “Quem nunca ousa quebrar as regras, nunca as supera”.
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